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O mundo ocidental assistiu encantado à ascensão econômica nipônica nos anos 70 e se rendeu à eficiência japonesa quando as corporações asiáticas revolucionaram os processos administrativos na década de 80 e escancararam ao mundo como os grandes nomes da indústria americana tinham se tornado decadentes e demasiadamente burocráticos. Just in Time, Kaizen e Kanban se tornaram mantras nas escolas de administração e viraram referência até em livros didáticos de Geografia no Ensino Médio. Toyota era um exemplo de empresa séria, limpa, profissional, o oposto da onerosa e ineficiente General Motors, que repassava aos seus clientes os custos de seu atraso, entregando-lhes carroças pouco confiáveis debaixo de uma carroceria bonitinha. Em tempos de globalização, internacionalização dos mercados e manutenção da insatisfação, os japoneses eram os guias do capitalismo. Do pó a professores de administração de americanos e britânicos em menos de 50 anos.

 
A surpresa é também causada pelo exotismo. O mesmo responsável por filtrar a informação que flui do arquipélago pelas lentes da atratividade midiática. Quando ouvimos falar de Japão na grande mídia é: uma nova engenhoca tecnológica, um desastre natural de grandes proporções ou alguma matéria quadrada sobre dois ou três pontos da cultura milenar, como a cerimônia do chá e a alimentação saudável. Portanto, restritos em estereótipos, acreditamos que os japoneses tiram carros melhores do nada por graça divina, por superioridade de caráter, quando não, genética. A justificativa para sua supremacia técnica é a fonte em si; são japoneses, isso explica clara e suficientemente o alto nível, não precisamos esmiuçar detalhes, chafurdar em minúcias, nos parece natural que eles, em condições iguais, façam algo melhor que os outros. Vocês sabem, no Otakismo a ideia é desconstruir esse verniz idílico que passam no Japão. Afinal, tudo que reluz demais, gera inerentemente algumas sombras.
 
Hiroko Uchino, então gerente de controle de qualidade da Toyota, morreu aos 30 anos de idade em 2002 durante o “expediente” (era 4 da manhã!), após trabalhar quase 500 horas extras em seu último semestre de vida. A empresa, hoje líder do setor automobilístico, na época ainda buscando ultrapassar a GM, alegou que não podia se responsabilizar pelo óbito, tendo em vista que ele estava fazendo um trabalho “voluntário” e não-remunerado (!). Trago esse exemplo simbólico para introduzir o karoshi, a arte de morrer literalmente por excesso de trabalho.
 

“O momento que sou mais feliz é quando posso dormir” (Hiroko Uchino, ex-gerente de controle de qualidade da Toyota)

Toyota – falemos um pouco do preço a ser pago pela ‘qualidade total’ do seu veículo  (real ou aspiracional)
O Japão é o único país que possui uma palavra para definir ‘morte por excesso de trabalho’. Falamos de karoshi (karo = excesso de trabalho / shi = morte), um quadro clínico extremo, ligado diretamente ao estresse ocupacional, que se reflete clinicamente em morte súbita por sobre-esforço, geralmente resultando em ataque cardíaco ou acidente vascular cerebral. Dois fatos estão sempre relacionados aos casos de karoshi: sobrecarga de trabalho e ausência de sinais prévios da doença fatal.
 
O primeiro caso registrado de karoshi ocorreu em 1969, quando um trabalhador de 29 anos da área de distribuição de jornais da maior empresa japonesa do ramo morreu por infarto. O problema, no entanto, só foi reconhecido como tal e ganhou a devida atenção na década de 80, o auge da bolha econômica japonesa; inúmeros executivos de alta hierarquia, ainda jovens e sem sinais prévios de alguma doença, simplesmente morreram de modo súbito. O assunto caiu na mídia japonesa e quando isso ocorre, não tem como dissimular. Foi percebido que vários casos ainda nos anos 70 deveriam ser creditados ao excesso de trabalho, e chamou mais a atenção o fato de nenhum caso semelhante ter sido registrado no ocidente industrializado durante o mesmo período.
 
Em 1982 três médicos publicaram um livro chamado Karoshi, onde, a partir da análise de casos pessoais, eles traçaram alguns pontos em comum: longas horas de trabalho, jornada irregular e mais de três mil horas trabalhadas no período de um ano. A título de comparação, um trabalhador braçal britânico da Revolução Industrial trabalhava 3500 horas anuais e você estuda isso na aula de História como semi-escravidão (substitua o braçal pela pressão do trabalho intelectual numa multinacional japonesa e ganhe dimensões do fato).
 
Ser adulto no Japão…
Forçado pela pressão pública e diante da indesmentível realidade, o Ministério do Trabalho japonês passou a produzir e publicar estatísticas acerca do problema. Atualmente, o Ministério tem indenizado entre 20 e 60 famílias por ano, de trabalhadores que morrem devido ao trabalho, ou que se suicidam por depressão causada pela rotina profissional, mas críticos dizem que esses números não contempla a ínfima parcela de afetados pela situação. Seriam casos extremos, onde está mais do que provado o excesso.
 
Um pouco de estatística. 80% dos empregados japoneses cancelariam um encontro caso o chefe solicite hora extra, 90% negam viver sob um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, 2/3 dos homens japoneses fazem mais de 20 horas mensais de serviço extra NÃO REMUNERADO e 4% fazem mais de 80 horas extras por mês. Uma entrevista com 500 trabalhadores do colarinho branco de Tóquio indica que 46% deles temem que possam eles próprios se tornarem vítima de karoshi, mas a ansiedade é ainda maior entre seus parentes. Check Ups, uma das medidas adotadas pelas empresas para tentar prevenir os casos, são insuficientes para detectar problemas de saúde decorrentes dos excessos ocupacionais, situação que deixa esposas e filhos aflitos com a possibilidade do provedor da casa ser a próxima vítima.
Existem estatísticas comparativas entre a jornada de trabalho do Japão em relação a outros países industrializados. Oficialmente, o japonês trabalha substancialmente mais do que um alemão, mas um número de horas semelhante ao americano, o que deixa claro que o problema nipônico está nas horas extras, na informalidade. 
 

“É porque tantas pessoas trabalham horas de graça que a Toyota colhe lucros. Espero que parte desses lucros possa voltar para ajudar os empregados e suas famílias. Isso faria da Toyota uma verdadeira líder global.” Esposa de Uchino

 
O estado do cidadão…
O japonês colocou o seu país no topo do mundo, mas não por acaso. Mais de 12 horas diárias de labuta, seis ou sete dias por semana, sem férias por ano a fio… Como consequência, o Ministério da Saúde publicou em 2007 alguns números relevantes. Naquele ano, 189 trabalhadores morreram pela rotina de trabalho e outros 208 ficaram gravemente doentes pela mesma razão (estamos falando de números oficiais, a realidade extrapola isso em muito!). Outros 921 afirmaram terem se tornado doentes mentais pelo excesso de trabalho, enquanto 201 tentaram ou consumaram o suicídio alegando perturbação mental pela saturação de labor.
 
O governo japonês, apenas agora reconhecendo de fato a extensão do problema, passou a transmitir às empresas a responsabilidade pelos esforços demasiados dos seus funcionários. “Em 29 de abril de 2008, uma empresa foi condenada a pagar ¥ 200 milhões para um homem com excesso de trabalho em um coma”. A lei também busca impor limites para as horas de trabalho extraordinárias e maior assistência médica preventiva e rotineira.
 
As famílias das vítimas passaram a processar as empresas na esperança de obter ao menos alguma indenização, mas, para recebê-las, precisam provar que a morte foi diretamente decorrente do trabalho, o que custa muito tempo, dinheiro e várias seções judiciais. Muitos acabam desistindo do sou potencial direito pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar de modo indesmentível. Nesse ponto é difícil condenar Justiça e corporações japonesas, pois as indenizações contemplam também os suicídios supostamente motivados pela sobrecarga profissional. Convenhamos, depressão não é algo muito tangível e uni-fatorial para que possamos, em todos os casos, bater o martelo contra o lado mais forte sem um diagnóstico clínico. Em outros casos, não há exames prévios que garantam o prévio estado sadio da vítima.
 
 
Algumas medidas foram oficialmente tomadas por parte das principais empresas do Japão. A Toyota, por exemplo, limita o número de horas extras mensais para 30; A Nissan possibilita trabalhar em casa, a Mitsubishi criou o dia sem hora-extra. Nada adianta se não existir o real comprometimento de todos os lados, ao contrário, leis e canetadas que limitam horas-extras podem trabalhar justamente no sentido oposto. Antes ao menos eles recebiam um pouco pelo excedente, agora nem isso quando ultrapassam o limite autoimposto. Não adianta inventar regras contra o excesso de trabalho se a demanda sobre o trabalhador segue inalterada, se a carga de atividades a qual ele deve dar conta não é humanamente possível de ser realizada no tempo útil. O resultado é degradante: o cara leva serviço para casa, ou pior, fica trabalhando no escuro dentro da própria empresa, uma prática que se tornou comum nos últimos anos. Sem receber pelo excedente que ultrapasse o limite, é óbvio.
Devo deixar claro que excesso de trabalho é um mal contemporâneo, jamais japonês. No início dos anos 70, o psicanalista americano Herbert Freudenberger definiu a Síndrome de Burnout (burnout de consumir por completo, não é um nome francês), uma síndrome de esgotamento físico e mental relacionado à vida profissional. Segundo o nova-iorquino, a síndrome é composta por 12 etapas que podem se suceder, alternar ou ocorrer ao mesmo tempo: Necessidade de se afirmar, dedicação intensificada, descaso com as próprias necessidades, recalque de conflitos, reinterpretação de valores, negação de problemas, recolhimento, mudanças evidentes de comportamento, despersonalização, vazio interior, depressão, síndrome de esgotamento profissional.
 
A diferença reside no fato de que os ocidentais chegam no limite, mas murcham antes de estourar. O problema explode já num estado grave mas não terminal, há possibilidade de reparação. O japonês vai em frente até de fato morrer…
 
H. Freudenberger
O que os levam ao limite extremo? Há sim fatores culturais, mas não exclusivamente. Seria confortável demais apenas atribuir o problema a distinções de cultura e tocar a bola. Especialistas colocam a culpa sobretudo na racionalização produtiva do Japão pós-guerra. A partir da crítica ao Japanese Production Management (JPM), especialistas atentam para o fato de que as diretrizes empresariais japonesas não caminham apenas no sentido da qualidade total no desenvolvimento e produção do produto; o real diferencial competitivo do Japão está na redução do custo de trabalho via corte de ‘resíduos’, isto é, tudo o que não é absolutamente imprescindível na produção.
 
São resíduos de produção: pausa para o xixi, coffee break, tempo de almoço, férias, feriado, deslocamento do funcionário pelas instalações etc. Parar a produção noturna, então, o pior dos prejuízos. Portanto, muito do esforço japonês de corte de custos na produção se dirige ao processo de trabalho, numa intensificação dos preceitos Tayloristas, o cientificismo exacerbado no processo produtivo. É super eficiente projetar a planta da fábrica de modo a facilitar a circulação dos gestores. Mas também é eficiente que o funcionário tenha medo de tirar férias ou mesmo de usufruí-las integralmente. Entendeu como o Japão – sob a estrela da Toyota – puxou o tapete de americanos e europeus? De graça é que não foi… Evidente que um funcionário francês, com 30 dias úteis de férias anuais não vai produzir como um cavalo nipônico.

“As empresas japonesas usaram o silêncio de seus leais trabalhadores como uma arma na competição internacional. Os funcionários estão cansados de serem usados dessa forma” Kiyotsugu Shitara – diretor do sindicato dos gerentes de Tóquio

Tá foda…
O resultado disso em demandas sobre o funcionário (denominado ‘colaborador’ nos dias de hoje) são jornadas noturnas, horas-extras remuneradas ou não, trabalho ‘voluntário’, trabalho em casa, trabalho nas férias etc. Para forçar os ‘colaboradores’ nesse sentido, as empresas japonesas oferecem um piso salarial baixo, mas amplos rendimentos baseados em resultado, os tais bônus meritocráticos (a pouca diferença salarial na hierarquia corporativa japonesa é aparente). Desempenhou, vai ganhar muito dinheiro, mas esse nível de desempenho cobra incontáveis horas de labor excedente. E diferente do que imaginamos, as horas  excedentes são mal remuneradas, o que traz retorno é resultado, percebam a sutileza.
 
Outro ponto extremamente prejudicial para o funcionário japonês é o deslocamento para casa. Numa cidade superlotada como Tóquio, pouquíssimas pessoas tem bala na agulha para morar perto dos centros de importância, logo, a maioria precisa se deslocar para os afastados subúrbios da cidade, uma viagem demorada, que geralmente leva mais de uma hora, no trânsito caótico ou dentro de um metrô igualmente abarrotado. A cereja no bolo para o delicioso dia útil do japonês. (isso quando o cidadão não precisa dormir num hotel-cápsula ou numa lan-house).
 
 
Você diz: tá, entendi que o japonês tem motivos para ficar muito estressado, mas ainda não captei o porquê dele, diferente do americano, chegar ao nível do óbito ao invés de apenas adoecer e pular fora antes de morrer. Com toda a razão, pois segue agora o motivo.
 
Falei acima sobre jargões administrativos consagrados pelos japoneses, como o Just in Time, Kanban, Kaizen, Defeito Zero, Qualidade Total… o segredo por trás do karoshi, que aliado aos fatores culturais japoneses, está no Kaizen. Ao propor a melhoria contínua com programas de sugestões ou criação de pequenos grupos para a resolução de problemas corporativos, as empresas japonesas inculcaram no seu público interno que seus objetivos são os mesmos da companhia. Não é a toa que uma bebida energética teve como slogan no Japão: “Você pode lutar 24 horas por sua corporação?” (ok, eu sei que o Kaizen prega também a melhoria contínua na vida dos colaboradores, mas prática e teoria, quando confrontadas pela dinâmica dos negócios e pela lógica do capital, muitas vezes não coincidem). Desse modo, vida profissional e pessoal têm suas fronteiras diluídas, tornam-se uma coisa só. O japonês tem mais dificuldade de passar a régua e falar “chega!”.
 
Um eficaz modo de conseguir isso é enfraquecer os sindicatos. Muitos dizem que um dos fatores de sucesso da Toyota é o prévio acordo com sindicatos para evitar de todo o modo a possibilidade de paralisação da produção. Sociólogos japoneses afirmam que na realidade não ocorre um acordo tão honesto como nos vendem. Diferente das automobilísticas americanas, que negociam com as poderosíssimas Unions de Detroit, as empresas japonesas subjugam os sindicatos por vias formais e informais. A incidência de greves diminuiu menos por precaução empresarial do que por “fascismo corporativo” (termo da sociologia japonesa), que transforma o sindicato em fantoches, meras fachadas que tendem a acatar os interesses empresariais em detrimento do bem estar social dos trabalhadores. (que fique claro, estou falando de Japão, não faço ideia de como as empresas japonesas se comportam em outros países)
 
 

Os japoneses estão sendo forçados a pensar mais sobre seus próprios interesses, algo que eles não estão acostumados a fazer. As pessoas estão vagarosamente percebendo que existem meios legais para se defenderem caso se sintam prejudicadas”  Yoichi Shimada -professor de direito da Universidade de Waseda

Estafa física e emocional, mesmo no Japão, chega em um ponto onde torna o funcionário improdutivo, mas isso não quer dizer que as empresas japonesas estão muito engajadas nisso. A concorrência barata e qualitativa de sul-coreanos e chineses, além da recessão da economia nacional e as crises econômicas de EUA e zona do euro jogam uma pressão maior nas empresas japonesas.
 
 
É verdade que a demanda por exportações japonesas está caindo, mas justamente por isso a insegurança cresce, afinal, inúmeros funcionários estão sendo demitidos. Se antes os japoneses trabalhavam muito para dar conta do crescimento, hoje continuam fazendo… para não perder o emprego. Anteriormente, ao menos, estabilidade era uma característica intrínseca do mundo corporativo nipônico.
 
 
Isso complementa o assunto sobre os herbívoros. Nova masculinidade? Retorno às raízes? A molecada está fugindo dessa vida lamentável em grandes corporações, abrindo mão de altos rendimentos e promoções por um mínimo de qualidade de vida.
Matsushita? Honda? Go hell!
Além do herbivorismo, outra prática que ganhou força no Japão foi o Slow Life, movimento criado na Itália com alguns valores para uma vida bem vivida no mundo atual. Com o crescimento no número de pessoas que preferem uma vida mais calma do que uma existência calcada na competição, velocidade e eficiência, o Ministério do Meio Ambiente do Japão reconheceu e mencionou o termo em seu Relatório Oficial Ambiental de 2003. Alguns valores do Slow Life são: slow pace, slow food, slow wear, slow industry etc.
 

” No final do Século XX, o Japão valorizava e buscava um estilo de vida “rápido, barato, conveniente e eficiente”, que proporcionasse prosperidade econômica. Porém, esse estilo também causou problemas tais como a desumanização, doenças sociais e poluição ambiental” Declaração Slow Life” adoptada pela cidade de Kakegawa em 2002:

Carl Honore tem um livro com valores semelhantes, chamado Devagar, onde mostra, por estudos de caso, como é possível ter uma vida rentável sustentada sobre os valores da desaceleração, e como muitas pessoas estão optando por isso mundo afora. Segue a sinopse:
 
Carl Honoré mostra que a cultura da velocidade teve início durante a Revolução Industrial, foi impulsionada pela urbanização e cresceu desenfreadamente com os avanços da tecnologia no século XX. Com o mundo em plena atividade, o culto à velocidade nos impeliu ao colapso. Vivendo no limite da exaustão, estamos sendo constantemente lembrados por nossos corpos e mentes que o ritmo da vida está girando fora de controle. Este livro traça a história de nossa intensa relação de pressa com o tempo, e atrela as conseqüências e charadas de viver nesta cultura acelerada, criação nossa. Por que estamos sempre com pressa? Qual a cura para a falta de tempo? É possível, ou até mesmo desejável, desacelerar? Percebendo o preço que pagamos pela velocidade implacável, as pessoas em todo o mundo estão reivindicando o tempo delas e desacelerando o passo – vivendo mais felizes e, conseqüentemente, de forma mais produtiva e saudável. Uma revolução ‘Devagar’ está acontecendo.

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