Em referência ao mês de conscientização do autismo, segue a entrevista explicativa concedida pela Dra. Cristina Pozzi, ao Diarinho.
Vale a pena ler!
Nome completo: Cristina Maria Pozzi
Idade: 51 anos
Natural: Blumenau
Estado Civil: Casada
Filhos: Não
Formação: Médica pediatra, especialização em neuropediatria, mestrado em pediatria e doutora em ciências
Experiências profissionais: Pediatra com clínica particular, integra a equipe de Atenção à Saúde Auditiva da Univali com atuação no SUS, trabalhou na Santa Casa de São Paulo, é professora do curso de Medicina da Univali.
DIARINHO – Quais as principais características do que se chama de Transtorno do Espectro Autista? Como ele se manifesta? Quem atinge preferencialmente? É possível chamar de doença?
Cristina Maria Pozzi – O transtorno do espectro do autismo é um distúrbio complexo do desenvolvimento. Ele envolve basicamente questões de comunicação e interação social e alguns comportamentos repetitivos e alterações sensoriais. Ele atinge predominantemente a infância, mas é uma doença, ou um distúrbio crônico. Portanto, ele permanece ao longo da vida. Se identifica autismo em adulto também. É muito frequente. Hoje se fala de uma frequência em torno de 1% da população. Como se manifesta? Por ser um espectro, você tem sintomas leves e sintomas muito exuberantes, que são detectáveis logo no primeiro, segundo ano de vida. Então é uma variedade, é uma heteregoneidade muito grande de manifestações. O mais clássico é assim, nos primeiros anos de vida, por volta dos dois, três anos, o atraso de linguagem e os déficits na reciprocidade social, na interação, no olho no olho, no brincar com os coleguinhas, uma dificuldade em fazer amizades com seus pares. E esses comportamentos repetitivos que, muitas vezes, aos olhos dos pais, são interessantes. “Ah! Já conhece todos os números em inglês com dois, três aninhos”. Ou “Ele já lê com quatro anos”. Então são manifestações, característics, que fogem ao comportamento, ao desenvolvimento típico.
DIARINHO – Cada vez mais se fala e se divulga sobre o autismo. Os números de pessoas com o transtorno está crescendo no mundo ou os dados refletem apenas que há mais procura pelo diagnóstico?
Cristina Pozzi – Eu acredito que todos estão melhorando na questão do diagnóstico. Tanto os pais, que estão observando mais, as professoras nas escolas e os profissionais na área de saúde, pelo fato do autimo, pelo menos nos últimos 20 anos, ter se tornado algo que todo mundo olha e quer estudar, isso afinou, melhorou a capacidade de diagnóstico. O que antes era considerado um retardo mental ou um transtorno, que se chamava de ‘função cerebral mínima’, mudou. O diagnóstico é clínico, é baseado em características, em critérios. Quem dita esses critérios é o Manual de Dianóstico e Estatísticas de Doença Mental. Então, à medida que a edição vai saindo, esses critérios vão se modificando. Mas, na verdade, eu acredito que a sensibilidade para o diagnóstico, a percepção clínica, ela tá mais acurada.
DIARINHO – Qual é a relação autismo X déficit cognitivo e autismo X super capacidade da criança?
Cristina Pozzi – Boa pergunta. O autismo cursa com um déficit, um retardo mental, na sua maioria. Em 70% das vezes. Então, não é uma doença, um quadro, um distúrbio bacana. O autismo tem impacto na vída do indivíduo. É um prejuízo. Tem um preço ruim. Esses 30% que não têm retardo, eles têm inteligência na média ou às vezes acima da média. Mas precisa saber como é que eles fazem uso dessa inteligência, se eles usam a seu favor. Então, ainda que a inteligência esteja normal, nesse 1/3 de indivíduos, é importante saber se eles vão dar conta de funcionar dentro de resolver seus problemas de forma adequada.
DIARINHO – Qual é o preço que uma pessoa autista paga não só na infância, mas também na adolescência e na vida adulta?
Cristina Pozzi –É um preço alto. Tanto pro indivíduo quanto pra família. […] É um preço alto, porque, de saída, o autista tem uma tendência, uma dificuldade de se colocar no lugar do outro, o que a gente chama de empatia. Por isso, muitas vezes, essa questão do contato visual não acontece. Ou talvez, o fato de não perceber o outro no olho-no olho, faça com que ele não perceba, também, as expressões e a intenção do outro. Então, o que é que isso acarreta? Acarreta que ele não percebe malícia. Se o outro fala coisas para ele fazer, que seja em nível de chacota, ele faz porque não vê a intencionalidade. Então ele passa por um “bobão”, vamos dizer assim e o que não é. Porque ele tem um entendimento literal, muitas vezes, das coisas. Então você não pode usar ironias, não pode usar metáforas, porque a compreensão é literal. Principalmente esses indivíduos que têm inteligência normal. A gente tá falando, vamos dizer, da ponta mais suave, mais leve do transtorno. E que também tem um custo. Esse custo nos relacionamentos, na dificuldade do outro de compreender que o seu funcionamento é diferente. Ou seja, para ele, mudanças na rotina são aversivas. Barulhos diferentes são aversivos. Alguém que vem, quer te abraçar, ficar fazendo carinho, pode ser aversivo. Em indivíduos com maior comprometimento, então, a dificuldade é enorme. As famílias, em geral, sofrem muito. Por que sair com uma criança autista num restaurante é um drama. [Por quê?] Não param, querem se mexer, às vezes do nada entram numa crise de birra e todo mundo olha e ninguém entende. “Pô! Essa família não educa o menino?”. Ou às vezes o menino invoca com uma coisa e não pode. […] Isso tem que se trazer de casa. Mesmo tendo um autista, é em casa que você tem que mostrar os limites e treinar desde muito cedo. A dificuldade, muitas vezes, é você lidar com o diagnóstico, com a busca pelo atendimento que, muitas vezes, além de caro, não oferece o que você precisa e você não encontra profissionais capacitados, e, por fim, esse peso assim “então, vamos fazer uma vida normal”, isso é muito difícil.
DIARINHO – Considerando que não há um exame clínico que comprove o autismo, como é feito o diagnóstico?
Cristina Pozzi –É com base na observação clínica e com base nesses critérios: você observa a criança clinicamente, você interage com ela, conversa, brinca, submete a situações de desafios, de contrariedade. E com as informações que os pais vêm trazendo e, muitas vezes, o que a escola também contribui.[Há um protocolo de ações do profissional que pode determinar se aquela criança é autista ou não?] Sim. Existe uma entrevista estruturada com a família. Existem escalas diagnósticas que corroboram. Existem escalas padrão ouro para o diagnóstico, que na nossa realidade são pouco praticadas pelo alto custo e pelo grau de treinamento que exige. Mas profissionais médicos, como neuropediatras, pediatras do desenvolvimento, psquiatras da infância, têm capacidade de compor esse diagnóstico. Normalmente com o apoio de uma equipe multidisciplinar. Por exemplo, uma psicóloga pode fazer a testagem da inteligência, pode avaliar na criança diversas habilidades. A fonoaudióloga vai avaliar como está a questão da linguagem, se tem um atraso. Então você compõe esse quebra cabeças, que é o diagnóstico com base nos relatos. E isso, veja, não é uma consulta que você bate o martelo. Porque estamos tratando de uma criança em desenvolvimento, onde algumas situações novas podem desencadear reações. Então você avalia uma, duas, três vezes… quantas for possível. Você identifica, às vezes, crianças por volta de dois anos, às vezes, com sinais de risco ou do próprio autismo. Então inicia o tratamento. Que é o treino dessas habilidades. [Essa investigação leva quanto tempo?] Uns dois, três meses. Às vezes mais. Às vezes você precisa de seis meses para se convencer. Porque, além dos sinais todos, existem as questões ambientais atuando. Famílias que reforçam comportamentos inadequados, por exemplo. Uma birra, você não pode valorizar a birra. Tem criança que é muito birrenta e faz parte da natureza da criança ser birrenta. Se você não corta essa birra, ela vai crescendo.
DIARINHO – Correntes da psicologia associam o autismo à qualidade da gestação da mãe, assim como alegam que os primeiros meses de vida do bebê, quando se estabelece a relação mãe e filho, poderiam interferir no desenvolvimento do autismo. Isso é fato?
Cristina Pozzi – Isso já foi uma teoria. A teoria da ‘Mãe Geladeira’. Já teve uma teoria da ‘Mãe Geladeira” que, felizmente, já foi abortada. Pensava-se que essa frieza na relação mãe e bebê pudesse desencadear esse isolamento, esse ensimesmamento do bebê. Mas hoje já se entende que há um componente genético forte na origem do autismo e se reconhece alguns fatores de risco. Os que já estão bem entendidos são: idade paterna avançada, prematuridade, gemeralidade [gêmeos], uso de determinados medicamentos na gravidez, como o ácido valpróico [anticonvulsivo e estabilizador de humor] e o estresse materno. No estresse materno, tira a “Mãe Geladeira’ e põe agora a ‘Mãe Estressada’, pelo nível de reações endócrinas, hormonais. Mas não que isso esteja ligado à gênese. É um fator de risco, não é a origem. [Mas por que a idade paterna pode interferir, por exemplo? Vem no espermatozóide uma informação genética?] Então, é um dado estatístico que tem se procurado estudar. É um achado estatístico. “Vamos estudar a idade de pais de autistas”… Então se encontrou um número maior de pais de idade avançada, 40, 45, 50 anos.
DIARINHO – É possível, com intervenção de terapias, garantir o desenvolvimento do paciente de maneira a mudar o grau do autismo?
Cristina Pozzi –É pra isso que a gente trabalha, né!? Pra você minimizar o impacto que esse transtorno causa na vida do indivíduo. Como? Trabalhando a comunicação. Usar a linguagem para comunicar. Porque, muitas vezes, a linguagem tá presente mas não serve para comunicar. Muitas vezes o autista senta aqui, conta uma história e você pergunta uma coisa e ele responde outra. Então a linguagem tá ok! Mas não existe troca, comunicação, compreensão, expressão. Não se cria um diálogo. Isso é um problema e você precisa treinar para que ele entenda que, através disso, ele chega no outro. Saiba comprar um café, poder pedir alguma coisa, enfim. A questão da autonomia é outro ponto muito importante no treinamento e no tratamento. Por exemplo, crianças de oito anos que não amarram o sapato ou que não fazem a higiene após o uso do banheiro. Você tem que, desde muito cedo, garantir essa autonomia. [Não se regride o grau do autismo, mas se melhora a qualidade de vida do autista, é isso?] Sim! Veja, o grau vai ser de acordo com a inteligência e com a linguagem. Esses dois fatores, quanto melhores, menos grave o autismo. Quanto piores, mais grave o autismo. Então um retardo mental, vai ser sempre um retardo mental. Você não vai tirar o retardo mental. A ausência de linguagem, numa criança não verbal, ela vai ser não verbal, mas precisamos encontrar um método de uma conexão, seja através de imagens, gestos, enfim… alguma forma de comunicação alternativa a gente precisa procurar. Indivíduos mais leves, que estão com a inteligência normal, a linguagem constituída, a gente vai treinar pra quê? Para não serem enganados, não passarem por bobos, para poderem se inserir eventualmente num mercado de trabalho. Não dá pra ser autista e ser relações públicas. Então você tem que entender a limitação do indivíduo, dentro de toda a avaliação que a gente faz, pra conseguir encaminhar e orientar a família e o caminho dele também, né!?
DIARINHO – Há quem fale sobre uma possível relação entre as vacinas e o autismo. Esse vínculo foi comprovado? Há alguma pesquisa científica já feita ou em andamento que mostre isso?
Cristina Pozzi – Olha, tem quem defenda a ideia de que substâncias que estão na vacina, mercúrio, cromo, chumbo, enfim, elementos que possam estar relacionados na gênese do transtorno. Mas isso são achados que a gente chama de ‘achados anedóticos’. Então você tem um relato de caso aqui, outro relato de caso ali. A ciência se faz na medida que você consegue replicar. Ela é baseada em evidências e na replicação de resultados. Na medida que você não encontra esse achado de uma forma frequente e de fato, isso não pode virar uma verdade. E o pior, na medida que você defende que é a vacina a causa, tem famílias, principalmente nos Estados Unidos, que pararam de vacinar os moleques. Aí as doenças que você tinha inicialmente controlado voltam a afetar e se cria um outro problema.
DIARINHO – A rede pública está preparada para atender autistas?
Cristina Pozzi – Olha, acho que está tá tentando se preparar. O gap [Palavra inglesa que significa “lacuna”, “espaço”]é muito grande. Nem a rede pública nem a rede privada, eu diria. Por quê? Por ser tão complexo, por ter tantos autistas diferentes, desde a identificação até a abordagem, ela tem que dar conta dessa variabilidade. Se você pensar nos cursos de graduação de profissionais que encontrarão um autista, como professores, pediatras, psicólogos, fonoaudiólogos, os cursos de graduação que estão formando esses profissionais e o espaço que se tem para discutir não só o autismo, com o retardo mental, as doenças mentais, a própria inclusão, é um espaço curto dentro do conteúdo. Então o profissional sai psicólogo ou fonoaudiólogo ou pediatra e cai no mercado de trabalho. Ou aí, faz uma especialização em infância, aí aprende sobre a criança e aí vou aprender um pouco mais sobre o autismo. Quem sabe se esteja preparado para dar conta dessa tarefa. Mesmo dentro da psicologia, por exemplo, você tem a abordagem psicanalítica, a abordagem comportamental, que é a que a gente acredita que seja a mais eficaz. Então você tem que seguir linhas específicas. Pra chegar no SUS e ser atendido, via de regra, você tem uma fila de espera interminável, porque a demanda é sempre maior que a oferta. […] Existem frentes, como centros especializados, Apaes, AMAs [Associações de Amigos dos Autistas]… AMAS são sempre iniciativas privadas, são de famílias que muitas vezes se organizam para promover esse atendimento. Aqui em Iajaí tá surgindo uma. Em Balneário tem […].
DIARINHO – No âmbito escolar, a convivência com outras crianças precisa ser supervisionada individualmente ou a simples interação entre as crianças vai proporcionar mais qualidade de vida à criança com diagnóstico de autismo?
Cristina Pozzi – Cada caso vai depender. Dentro do autismo você tem alguns tipos de manifestações, algumas formas, alguns fenótipos sociais, que a gente chama. Então tem o passivo, que é aquele que é do ‘bem’. Ele tá lá, mas se você puxa pra cá ele vem. Se puxa pra lá, ele vai. Se alguém interage com ele tá bom, se ninguém interage, tá bom também. É o tipo do menino que não vai dar problema. Nesse caso, você tem que ir ali e investir nessa relação com o outro. Mas não precisa mediar o tempo inteiro. Tem meninos que são mais agressivos, que são agitados. Então esse você tem que monitorar o tempo inteiro. Tem aqueles isolados. Eles não vão se misturar. Então cabe ao monitor, ao cuidador, trazer ele pra roda. Não tem uma receita. Na verdade você tem que perceber como é que funciona aquela criança e intermediar. […].
DIARINHO – O autismo é um problema físico-químico que se opera o cérebro ou é um problema psicológico?
Cristina Pozzi – Não é um problema psicológico. É um problema biológico. Esse cérebro tem um funcionamento diferente. Ele atinge o que se chama de cérebro social. Ele pega a região da amígdala, do cerebelo, das áreas que identificam faces, o córtex frontal, o temporal. Tem uns circuitos que são ativados de uma maneira diferente no autista. Se você olhar um rosto, vai ativar uma área do seu cérebro para identificação de rosto. No autista, muitas vezes, essa área não ativa. Ativa quando ele olha um objeto. Por isso, muitas vezes, a criança entra numa sala que tem um monte de gente, mas vai num objeto. Ela não se apercebe das pessoas. Por isso a dificuldade de se relacionar com o outro. […].É nesso ponto que parece haver disfunções. Então existem alterações anatômicas, na questão do número de colunas neuronais. Muitas vezes, no tamanho dos neurônios, do número dos neurônios. […]. [O autismo é inato ou ele é desenvolvido?] É os dois. É meio e é genético. A genética e o ambiente. Imagine que você nasce com a tendência e você tem um gatilho ambiental, algo que acontece no meio e ‘Pá!’, desencadeia. É isso o que se entende hoje. Pode ser que amanhã não seja mais. Já tem mais de 150 genes relacionados como autismo.
DIARINHO – No gênero, o autismo é mais masculino ou mais feminino?
Cristina Pozzi – Muito mais em meninos. Uma proporção de quatro pra um. Esse é mais um dos motivos que se pensa numa origem genética. Porque se não fosse assim, acometeria igualmente os sexos. Então tem uma tendência para o XY [Sistema de determinação de sexo, através dos chamados cromossomos].
DIARINHO – Até que ponto a desinformação sobre o transtorno pode atrapalhar a vida da pessoa autista?
Cristina Pozzi – Por exemplo, existe uma família que tá numa fila de banco e a criança tá dando um certo trabalho ali pra controlar os comportamentos. E a moça da fila começa a olhar olho torto pra mãe. Isso, pra família, já é um problema. Na medida que você emprega um indivíduo, que tem habilidade para determinada tarefa, mas às vezes você vai dar o comando e não deu inteiro ou deu pela metade ou de uma maneira metafórica. Ele também vai se prejudicar nesse emprego. A gente vem falando sobre a conscientização pelo autismo e as pessoas começam a entender que existe o autismo. Mas na área da saúde, por exemplo, se você não identifica no tempo certo, na janela de oportunidade pra tratar e vai identificar aos 20, 25 anos, já se cristalizaram muitos comportamentos, já sofreu bastante afetivamente, psiquicamente, com seu jeito de ser. Essa desinformação, inclusive para a equipe de saúde, acarreta, sim, um prejuízo. [E essa janela de oportunidades para identificar e tratar adequadamente o autista vai de qual idade a qual idade?] Olha, eu diria até antes de entrar na escola, até os seis anos, sendo otimistas.
Fonte: https://diarinho.com.br/noticias/entrevistao/cristina-maria-pozzi/